No coração da Europa do século XVI, em meio a um turbilhão de crenças, medos e uma justiça implacável, existiu um homem cuja profissão era tão temida quanto essencial: o carrasco. Mas Franz Schmidt, conhecido como Mestre Franz, não era um carrasco comum. Sua vida, que se estendeu de 1555 a 1634, foi um testemunho singular da complexidade humana e das nuances de uma era brutal. Atuando em Nuremberg de 1578 a 1617, Schmidt não apenas executou sentenças de morte, mas também registrou meticulosamente cada uma delas em um diário que se tornaria uma janela sem precedentes para o passado. Este não é apenas o relato de um homem que empunhava a espada, mas a história de um indivíduo que, apesar de sua função macabra, buscou dignidade, honra e, surpreendentemente, a cura.

O Ofício Hereditário e o Estigma Social
A vida de Franz Schmidt foi moldada por uma herança que poucos desejariam. Seu pai, Heinrich, um lenhador, foi forçado a assumir o papel de carrasco em Hof, na Baviera, sob a ameaça de execução. Esse ato brutal selou o destino da família Schmidt, condenando-os a uma profissão que, embora vital para a manutenção da ordem social, carregava um estigma profundo. Franz, aos 18 anos, em 1573, seguiu os passos do pai, aprendendo o ofício sob sua supervisão. Em 1578, ele ascendeu ao cobiçado, porém infame, posto de carrasco em Nuremberg, uma das mais importantes cidades imperiais da época. Casou-se com Maria Beck, filha do carrasco-chefe, solidificando sua posição dentro dessa casta marginalizada. Apesar de seu salário ser comparável ao dos juristas mais ricos da cidade e de possuir uma residência espaçosa, a vida de um carrasco era de isolamento social. Eles eram vistos com desconfiança e desprezo, excluídos de círculos sociais e profissionais, vivendo em um limbo social que os impedia de desfrutar de plena cidadania.
“Essa dualidade – o carrasco que tirava vidas e o curandeiro que as salvava – adiciona uma camada fascinante à sua persona, revelando um homem de habilidades diversas e uma mente prática, capaz de transitar entre a morte e a vida de uma forma que poucos poderiam compreender.”
O Profissional Meticuloso e o Curandeiro Inesperado
Franz Schmidt era um mestre em seu ofício. Sua reputação não se baseava apenas na quantidade de execuções que realizou, mas na maneira como as conduzia. Ele era conhecido por sua meticulosidade e por buscar uma morte rápida e, dentro do possível, menos dolorosa para os condenados. Dominava diversas técnicas de execução: enforcamento, decapitação com espada, a temida roda, a fogueira e o afogamento. Cada método era aplicado com precisão, refletindo não apenas sua habilidade, mas também a rigidez da justiça da época. A roda, por exemplo, era reservada para os criminosos mais violentos, enquanto a fogueira era raramente utilizada, e o afogamento para mulheres que cometessem infanticídio era frequentemente comutado para decapitação, muitas vezes por sua própria intervenção e de clérigos.

Contrariando a imagem sombria de seu trabalho principal, Schmidt também exercia uma profissão paralela que o colocava em contato com a vida e a cura: ele era um curandeiro. Graças ao seu profundo conhecimento da anatomia humana, adquirido através das dissecações e do próprio ato de executar, ele se tornou um consultor médico respeitado. Estima-se que ele tenha realizado cerca de 15.000 consultas médicas ao longo de sua vida, tratando doenças e realizando procedimentos. Essa dualidade – o carrasco que tirava vidas e o curandeiro que as salvava – adiciona uma camada fascinante à sua persona, revelando um homem de habilidades diversas e uma mente prática, capaz de transitar entre a morte e a vida de uma forma que poucos poderiam compreender.
O Diário: Uma Janela para um Mundo Esquecido

O legado mais extraordinário de Franz Schmidt é, sem dúvida, seu diário. Este manuscrito, que ele manteve de 1573 a 1617, é um documento histórico de valor inestimável. Nele, Schmidt registrou detalhadamente 361 execuções e 345 punições menores, como flagelações e amputações de orelhas ou dedos. Cada entrada continha a data, o local, o método da execução, o nome, a origem e a posição social do condenado, além de, nos anos posteriores, descrições mais verbosas dos crimes que levaram à sentença. Embora o autógrafo original não exista mais, cópias manuscritas foram preservadas e a primeira edição impressa surgiu em 1801.
“Franz Schmidt não foi apenas um carrasco; ele foi um observador, um registrador e, em última análise, um homem que navegou pelas complexidades de seu tempo com uma dignidade surpreendente.”
O diário de Schmidt não é apenas um registro macabro de mortes; é uma fonte primária sem igual para a história social e jurídica da Europa do século XVI e início do XVII. Ele oferece um vislumbre cru e direto das práticas de justiça criminal, das mentalidades da época e da vida cotidiana de uma sociedade que lidava com a punição de uma forma muito diferente da nossa. As anotações, embora factuais e desprovidas de grande emoção, revelam a rotina de um carrasco e, por vezes, até mesmo a conduta dos condenados antes da morte – alguns se comportando de forma desafiadora, outros cantando no caminho para a execução. É um testemunho da brutalidade, mas também da ordem e dos rituais que cercavam a aplicação da lei.

Aposentadoria, Reconhecimento e o Fim do Estigma
Após 45 anos de serviço, Franz Schmidt se aposentou em 1617. Longe do patíbulo, ele se dedicou integralmente à sua prática como curandeiro, consolidando sua reputação como um homem de conhecimento e utilidade para a comunidade. O mais notável, no entanto, foi sua busca incansável pela reabilitação social de sua família. Graças à sua conduta exemplar e a uma carta de recomendação de membros do conselho da cidade de Nuremberg, ele conseguiu o impensável: o imperador Fernando II concedeu-lhe um privilégio imperial que o declarou “ehrlich” (honrado), removendo o estigma social de sua antiga ocupação. Ele foi sepultado com honras em um dos cemitérios proeminentes de Nuremberg em 1634, e seu túmulo ainda existe hoje. Essa conquista é um testemunho de sua perseverança e da complexidade de uma sociedade que, embora rígida, permitia a redenção e o reconhecimento, mesmo para aqueles que exerciam as profissões mais marginalizadas.

Um Legado de Contradições
A história de Franz Schmidt é um estudo de contradições. Ele foi um homem que tirou centenas de vidas em nome da justiça, mas que também curou milhares de pessoas. Viveu à margem da sociedade, mas alcançou um nível de respeito e reconhecimento que poucos de sua profissão conseguiram. Seu diário, um registro frio e factual de mortes, tornou-se uma das fontes mais ricas para entender a vida e a lei na Europa moderna. Ele nos força a questionar nossas próprias percepções sobre justiça, moralidade e o papel do indivíduo em um sistema que muitas vezes parece desumano.

Franz Schmidt não foi apenas um carrasco; ele foi um observador, um registrador e, em última análise, um homem que navegou pelas complexidades de seu tempo com uma dignidade surpreendente. Sua vida nos lembra que a história é raramente preto e branco, e que mesmo nas sombras mais profundas, a humanidade pode encontrar maneiras de brilhar.
Depois de conhecer a história de Franz Schmidt, o carrasco que também curava e buscava honra, você ainda vê a justiça e a punição da mesma forma?

Bibliografia Consultada:
•Harrington, Joel F. The Faithful Executioner: Life and Death, Honor and Shame in the Sixteenth Century. Farrar, Straus and Giroux, 2013.
•Schmidt, Franz. A Hangman’s Diary: The Journal of Master Franz Schmidt, Public Executioner of Nuremberg, 1573-1617. Editado por Albrecht Keller. D. Appleton, 1928.
•Wikipedia. Franz Schmidt (executioner). Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Franz_Schmidt_(executioner). Acesso em: 7 de setembro de 2025.
•History of Emotions. The Executioner as Tabloid Author. Artigo de Joel F. Harrington. Disponível em: https://www.history-of-emotions.mpg.de/texts/the-executioner-as-tabloid-author. Acesso em: 7 de setembro de 2025.
•Goodreads. A Hangman’s Diary: The Journal of Master Franz Schmidt, Public Executioner of Nuremberg, 1573-1617 by Franz Schmidt. Disponível em: https://www.goodreads.com/book/show/20702683.A_Hangman_s_Diary_The_Journal_of_Master_Franz_Schmidt__Public_Executioner_of_Nuremberg__1573_1617. Acesso em: 7 de setembro de 2025.
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