
Imagine a cena: uma menina de doze anos caminha por uma praia isolada na Ilha Jedediah, na bela e selvagem Colúmbia Britânica, Canadá. É 20 de agosto de 2007. Seus olhos curiosos avistam algo fora do comum: um tênis de corrida, azul e branco, abandonado na areia. Movida por um impulso infantil, ela o pega. Dentro, há uma meia. E dentro da meia… um pé humano em decomposição.
“Não havia assassino em série. As vítimas, identificadas por DNA, eram pessoas que haviam sido dadas como desaparecidas, vítimas de suicídio ou de acidentes trágicos.”
Seis dias depois, a poucos quilômetros dali, na Ilha Gabriola, um casal encontra outro tênis. Outro pé. A notícia se espalha como um incêndio, dando início a um dos mistérios mais fascinantes e arrepiantes do nosso tempo. Nos doze anos seguintes, um total de 21 pés humanos, a maioria calçando tênis modernos, seriam devolvidos pelo mar às praias do Mar de Salish, uma vasta rede de canais que se estende entre o Canadá e os Estados Unidos.

A imaginação do público disparou. A mídia internacional criou manchetes sensacionalistas. Seria obra de um assassino em série com um fetiche macabro? Vítimas de um desastre aéreo ou de um naufrágio de migrantes? Ou algo ainda mais bizarro, talvez envolvendo alienígenas? As teorias mais sombrias floresceram, alimentadas pelo medo do desconhecido. A polícia estava perplexa, e até médiuns se ofereceram para ajudar a desvendar o enigma.
Mas a verdade, como muitas vezes acontece, provou ser mais estranha — e mais científica — do que a ficção. Enquanto o mundo especulava sobre monstros e conspirações, um grupo de cientistas forenses, de forma metódica e silenciosa, começou a juntar as peças de um quebra-cabeça complexo, cuja solução não estava em mentes criminosas, mas nas profundezas do oceano, no comportamento da vida marinha e, surpreendentemente, na tecnologia dos nossos calçados.

A primeira pergunta que os cientistas precisavam responder era: por que apenas os pés? Onde estavam os corpos? A resposta começou a tomar forma com o estudo da decomposição subaquática. Em águas frias e profundas como as do Mar de Salish, um corpo que afunda não se comporta como em águas rasas e quentes. A pressão esmaga os gases da decomposição, impedindo que o corpo suba à superfície. Em vez disso, ele permanece no fundo, onde um processo chamado saponificação transforma a gordura corporal em uma substância cerosa chamada adipocera, preservando partes do corpo por anos.
“Exércitos de necrófagos marinhos — camarões, lagostas e caranguejos — devoraram as carcaças em questão de dias. E o mais importante: eles atacaram primeiro as partes mais macias, como as articulações.”
Isso explicava por que os corpos não eram encontrados, mas não por que os pés se soltavam. Para resolver essa peça do enigma, a cientista forense Gail Anderson realizou um experimento engenhoso. Usando carcaças de porco (que são biologicamente semelhantes às humanas), ela as submergiu nas mesmas águas. O que ela descobriu foi um frenesi alimentar. Exércitos de necrófagos marinhos — camarões, lagostas e caranguejos — devoraram as carcaças em questão de dias. E o mais importante: eles atacaram primeiro as partes mais macias, como as articulações. Os tornozelos, compostos principalmente de ligamentos e tecidos conjuntivos, eram um alvo fácil. Em menos de quatro dias, os pés eram naturalmente desarticulados do resto do esqueleto.

Ok, os pés estavam se soltando, mas por que eles flutuavam até a praia em vez de permanecer no fundo com o resto do corpo? A resposta, incrivelmente, estava nos próprios sapatos. Desde os anos 80 e 90, os tênis de corrida evoluíram drasticamente. As solas, antes feitas de borracha densa, passaram a ser construídas com espumas sintéticas leves e, crucialmente, com bolsas de ar encapsulado para amortecimento. Esses tênis modernos agiam como verdadeiros coletes salva-vidas para os pés desmembrados. Enquanto o corpo permanecia no leito do oceano, o pé, protegido e impulsionado pelo seu tênis flutuante, iniciava sua longa jornada até a superfície e, eventualmente, até a costa.
“Enquanto o corpo permanecia no leito do oceano, o pé, protegido e impulsionado pelo seu tênis flutuante, iniciava sua longa jornada até a superfície e, eventualmente, até a costa.”
Faltava uma última peça: por que especificamente no Mar de Salish? O oceanógrafo Parker MacCready usou um modelo de computador superavançado para simular as correntes da região. Ele descobriu que a geografia única do Mar de Salish, combinada com os padrões de vento e marés, cria uma espécie de “armadilha” natural, que tende a coletar e depositar em suas praias qualquer detrito que flutue na área.

O mistério estava resolvido. Não havia um assassino em série. As vítimas, identificadas por DNA, eram pessoas que haviam sido dadas como desaparecidas, vítimas de suicídio ou de acidentes trágicos. Seus corpos afundaram, foram limpos pela vida marinha, e seus pés, calçados com tênis modernos, flutuaram até a costa, levados por correntes previsíveis. Uma tempestade perfeita de biologia, oceanografia e tecnologia de calçados.
A história dos pés de British Columbia é um lembrete poderoso de que o mundo natural é um lugar complexo e, por vezes, macabro. Mas também nos mostra a beleza do método científico, que consegue encontrar lógica e razão no que parece ser puro caos e horror. A verdade estava lá o tempo todo, não nas páginas de um romance policial, mas nas correntes silenciosas do oceano e na fome insaciável de suas criaturas.

O caso está encerrado, mas a história permanece, ecoando uma pergunta fundamental sobre nossa percepção da realidade. Se a tecnologia dos nossos calçados não tivesse mudado, quantos desses mistérios teriam permanecido para sempre, sem solução, escondidos nas profundezas escuras do oceano?
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