Por: Academia de Platão.

O Chamado das Sombras
E se a mais pura bondade, encarnada em um homem, entrasse hoje em sua sala de estar? Não a bondade polida das convenções sociais, mas a inocência radical, despida de julgamento e de malícia. Você o abraçaria como um salvador ou o temeria como um louco? Quantas vezes, acorrentados em nossa caverna de cinismo e desconfiança, não pedimos por um vislumbre de luz, por um herói que nos redima? E se essa luz chegasse, seríamos capazes de suportar seu brilho?
“A tragédia de ‘O Idiota’ é que a sociedade, ao redor do Príncipe, escolhe destruir a bondade para não ser consumida por sua luz.”
A Dança na Parede
É com essa perturbação que Fiódor Dostoiévski nos presenteia em “O Idiota”. Das brumas de um tratamento para a epilepsia na Suíça, emerge o Príncipe Liev Nikoláievitch Míchkin, um homem cuja alma parece não ter sido tocada pelo lodo do mundo. Ele retorna à fervilhante e vaidosa sociedade de São Petersburgo sem posses, sem malícia e com uma compaixão que beira o divino. Ele é a sombra mais desconcertante projetada na parede da caverna russa: um homem perfeitamente bom.

Ao seu redor, dançam outras sombras, intensas e desesperadas. Nastássia Filíppovna, uma mulher de beleza estonteante e alma ferida, consumida pela vergonha e pelo desejo de punição. Rogójin, a encarnação da paixão bruta, um homem que ama com a mesma faca com que ameaça matar. Em meio a uma sociedade de aparências, onde o dinheiro, o status e a honra são os únicos deuses, Míchkin caminha como um espelho. Ele não julga, apenas reflete. E o que cada um vê nesse espelho é a imagem insuportável de sua própria escuridão.
O Despertar do Prisioneiro
O ponto de virada, o momento em que o prisioneiro se vira para a luz, não acontece com um estrondo, mas com um sussurro. Acontece cada vez que um personagem, acostumado à troca de interesses e à manipulação, se depara com a sinceridade desarmante do Príncipe. Eles esperam um golpe, uma segunda intenção, mas encontram apenas um olhar de compaixão genuína. E essa compaixão é a primeira fresta de luz na caverna.
A Forma Pura que Dostoiévski busca aqui é a do Amor Ágape — o amor incondicional, sacrificial, que não pede nada em troca. Míchkin é a tentativa de esculpir um Cristo para o século XIX, não um Cristo que opera milagres, mas um que vive e respira entre os homens, expondo a hipocrisia deles com sua mera presença. Ele ama Nastássia não por sua beleza, mas por seu sofrimento. Ele perdoa Rogójin não por ingenuidade, mas por enxergar, sob as camadas de fúria, um irmão em desespero.

“Dostoiévski não nos oferece uma fábula com final feliz. Ele nos deixa com a perturbadora constatação de que talvez nosso mundo não esteja preparado para a bondade absoluta.”
E o reflexo em nós? Onde essa jornada ecoa em nossas vidas? A presença de Míchkin nos força a uma pergunta incômoda: o que faríamos com a bondade pura se a encontrássemos? Nós a protegeríamos ou, como as mariposas que voam para a chama, tentaríamos destruí-la para não sermos consumidos por sua luz? A tragédia de “O Idiota” é que a sociedade, ao redor do Príncipe, escolhe a segunda opção. Sua bondade não redime; ela acelera a catástrofe, pois as sombras, quando confrontadas com a luz, tornam-se mais nítidas, mais desesperadas, mais violentas.
A Luz Ofuscante
Ao fechar este livro, você talvez se sinta como o prisioneiro que vê o sol pela primeira vez: a luz da verdade ofusca. A bondade de Míchkin, que deveria ser a salvação, torna-se o catalisador da ruína. Ele não consegue salvar Nastássia de seu destino trágico nem Rogójin de sua paixão destrutiva. No fim, sua própria mente, o santuário de sua inocência, desmorona, devolvendo-o à escuridão da “idiotice” clínica. A luz era forte demais.
É aqui que a verdadeira jornada começa. Dostoiévski não nos oferece uma fábula com final feliz. Ele nos deixa com a perturbadora constatação de que talvez nosso mundo não esteja preparado para a bondade absoluta. Talvez nós, prisioneiros da caverna, tenhamos nos acostumado tanto com a penumbra que a luz plena nos cega e nos enlouquece. A falha não está no Príncipe, mas no mundo que o rotula como “idiota”.
“A maior sabedoria seja a coragem de ser bom em um mundo que não sabe o que fazer com a bondade.”

O Retorno à Caverna
Leia este livro. Deixe que a sombra de Míchkin dance para você, com sua compaixão desconcertante e sua trágica inocência. E então, quando terminar, volte para o seu mundo com a memória da luz. Pergunte a si mesmo: em minha vida, em minhas relações, eu sou mais um dos que zombam do “idiota” ou sou aquele que, por um instante, teve a coragem de olhar para o espelho que ele segura?
Pois a literatura não nos ensina a escapar da vida, mas a vivê-la com a sabedoria de quem já viu o que existe além das correntes. E “O Idiota” nos ensina que, talvez, a maior sabedoria seja a coragem de ser bom em um mundo que não sabe o que fazer com a bondade.
“Porque os livros não nos dão respostas — eles nos devolvem as perguntas que esquecemos de fazer.”
— Academia de Platão
Bibliografia Consultada
•DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Tradução de Nina e Filipe Guerra. São Paulo: Editora 34, 2002.
•Clube de Literatura Clássica. “O Idiota, de Fiódor Dostoiévski”. Disponível em: https://literaturaclassica.com.br/o-idiota
•Literatura Lida. “Análise: O idiota – Fiódor Dostoiévski”. Disponível em: https://literaturalida.wordpress.com/2014/11/06/analise-o-idiota-fiodor-dostoievski/
•FRANK, Joseph. Dostoiévski: Os Anos Milagrosos, 1865-1871. São Paulo: Edusp, 2003.
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